terça-feira, 6 de abril de 2010

Os Primeiros Passos para uma Biografia Autorizada


Trecho em que o escritor e jornalista carioca Marcel Souto Maior, biógrafo de Chico Xavier, relata como se deu o seu encontro com o médium e de como iniciou o seu projeto jornalístico em torno da obra “As Vidas de Chico Xavier”.




Eu era repórter do Jornal do Brasil, tinha sérias dúvidas sobre questões como vida depois da morte e encarava o líder espírita com o habitual distanciamento jornalístico.

Chico era um mito nacional adorado por milhões de brasileiros e menosprezado por centenas de jornalistas como eu.

Chico Xavier? Não é o Chico Buarque, não? Chico Anysio? Chico Mendes? amigos de redação ironizavam ao saberem do meu projeto: lançar a primeira biografia jornalística de um dos personagens mais idolatrados e polêmicos do país.

Lá fui eu.

Aos 81 anos, atormentado por sucessivas crises de angina, abatido por duas pneumonias graves e castigado por uma catarata crônica, Chico Xavier vivia em repouso e por recomendação médica já não participava de sessões espíritas há quase nove meses.

Eu teria de contar com o apoio de seu filho adotivo, Eurípedes, para conseguir visitá-lo em casa nas reuniões para poucos amigos aos sábados à noite. Não consegui passar pelo portão. Eurípedes preferiu preservar o pai de qualquer desgaste, e eu decidi iniciar a reportagem sem autorização de ninguém nem do possível biografado.

O primeiro passo: acompanhar uma sessão espírita no Grupo Espírita da Prece, mais conhecido como "o Centro do Chico".

Era noite de sábado e fazia frio. Dava para contar nos dedos o número de participantes do culto reunidos na casa simples, com piso de cimento e telhas descascadas no teto.

Éramos catorze todos sentados a dois metros de distância da mesa comprida onde, até o ano anterior, Chico Xavier causava comoção ao fechar os olhos e pôr no papel mensagens de mortos a suas famílias na Terra.

Com a ausência de Chico nas sessões dos últimos meses, as multidões do ano anterior reduziram-se até chegarem naquele punhado de gente disposta a acompanhar a leitura do Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, e a análise de temas como compaixão e solidariedade.

Sentei no banco de madeira em frente à mesa ocupada pelos dirigentes da sessão e, minutos depois, levei um susto.

Contra todas as expectativas, Chico Xavier reapareceu no Grupo Espírita da Prece, o corpo franzino arqueado sob um terno mal-ajambrado e o sorriso aberto de quem volta para casa depois de meses de internação.

Ele se sentou à cabeceira, ouviu em silêncio a leitura de textos de Kardec e, em seguida, rezou o pai-nosso com um fio de voz.

Eu não sabia nem como nem por que, mas lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto sem que eu sentisse qualquer emoção especial. Desabavam à minha revelia, aos borbotões, sem nenhum controle.

No fim da sessão, eu me aproximei de Chico e fui direto ao assunto com a desinibição e arrogância típicas dos jovens jornalistas:

- Chico, trabalho no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e vim pedir autorização para escrever sua biografia.

Chico recorreu a um de seus enigmas, tática usada por ele para evitar a indelicada palavra "não":

Deus é quem autoriza.

Continuei no mesmo tom:

E Deus autoriza?

Chico ficou em silêncio dois, três segundos e respondeu com um meio sorriso:

Autoriza.

Era tudo o que eu precisava ouvir. Ou quase tudo. O acesso à casa de Chico, fundamental para a reportagem, foi negado por Eurípedes no dia seguinte. E o tempo começou a correr contra o projeto.

Era preciso voltar ao Rio em breve com o máximo de informações possível.., e o jovem repórter entrou em ação novamente, com uma tática de emergência.

Liguei para o outro filho adotivo de Chico, Vivaldo, responsável pela catalogação da obra do líder espírita e me apresentei com uma meia verdade:

Vivaldo, sou jornalista e estou escrevendo uma reportagem sobre o seu pai. Você pode me ajudar?

Vivaldo convidou-me para uma visita e, simpático, ajudou- me, sem saber, a vencer o veto da véspera: ele morava em um anexo nos fundos da casa de Chico e foi lá que eu entrei na noite seguinte com gravador e bloco à mão para a primeira entrevista.

Vivaldo tratou de servir café enquanto eu despejava sobre ele as primeiras perguntas - as mais leves - sobre a obra de Chico Xavier e a responsabilidade dele, Vivaldo, de datilografar, classificar e arquivar os romances e poemas vindos do além.

Eram quase quatrocentos livros e mais de 20 milhões de exemplares vendidos de clássicos como Parnaso de Além-Túmulo (o livro de estréia) e best sellers como Nosso Lar (o campeão de vendas). Todos, sem exceção, segundo Chico, foram transmitidos a ele por espíritos.

A pauta da conversa estava prestes a entrar nas perguntas mais complicadas sobre a personalidade e a intimidade de Chico quando uma campainha soou na sala.

- É meu pai. Tá me chamando , Vivaldo pediu licença e se retirou.

Com dificuldades para andar, Chico tinha um interruptor ao lado da cama para acionar os filhos em caso de necessidade ou emergência.

Quando Vivaldo saiu, um calor insuportável tomou conta da minha mão direita: era como se ela estivesse pegando fogo. Uma sensação tão nítida que me fez largar a caneta, saltar do sofá, ir até a porta, girar a maçaneta e correr para o quintal.

Fiquei ali fora sacudindo a mão de um lado pro outro na noite fria até Vivaldo reaparecer.

- Meu pai disse que a sua biografia vai ser um sucesso. Parabéns.

Só deu tempo de eu buscar o gravador e o bloco na sala, me desculpar e desaparecer.

Foi assim, com lágrimas e calores inexplicáveis, que dei os primeiros passos no território de Chico Xavier.

Auto-sugestão? Fenômenos físicos provocados pela aura de um ser iluminado?

São muitas as perguntas sem resposta neste mundo onde vivos e mortos se misturam e espíritos enviam notícias do além por meio de médiuns em mensagens sempre intrigantes.

Trecho de uma delas: "Querida tia Isabel, se puder, não deixe a vovó chorar tanto nem a minha Mãezinha Gilda continuar tão aflita por minha causa. Estou vivo, mas preciso desembaraçar-me das prisões de casa para conseguir melhorar."

A carta é assinada por Antônio Carlos Escobar, jovem de 22 anos, morto dias antes.

Ao longo de todo o texto, o "espírito" cita nomes e sobrenomes de família de vivos e de mortos: "Estou aqui com o meu avô Primitivo Aymoré e com minha avó Isabel Roa Escobar...".

A mensagem saiu das mãos de Chico Xavier, em sessão pública em Uberaba, arrancou lágrimas da mãe de Antônio Carlos, Gilda, e provocou o mesmo efeito nas pessoas reunidas no Grupo Espírita da Prece: o de reforçar a fé num dos dogmas do espiritismo: o de que existe, sim, vida depois da morte.

Como duvidar da autenticidade de um texto pontuado por tantos nomes e sobrenomes só conhecidos pela família do morto?

Como duvidar de Chico Xavier?

Fenômenos como estes se repetiram milhares de vezes ao longo dos 74 anos de atividade mediúnica do líder espírita.

Quando Chico completou 70 anos - no dia 2 de abril de 1980 - já eram 10 mil as cartas de mortos a suas famílias psicografadas por ele, segundo sua assessoria. E já eram também 2 mil as instituições de caridade fundadas, ajudadas ou mantidas graças aos direitos autorais dos livros vendidos ou das campanhas beneficentes promovidas por Chico Xavier.

Porta-voz de Deus? "Uma besta encarregada de transportar documentos dos espíritos"

Chico reagia.

Um iluminado? "Não. Uma tomada entre dois mundos", minimizava.

Chico Xavier, o apóstolo? "Nada disso. Cisco Xavier" - ele transformava o nome em trocadilho quando já era idolatrado por caravanas de fiéis e curiosos vindos de todo o Brasil e indicado ao Prêmio Nobel da Paz em campanha nacional embalada por mais de 2 milhões de assinaturas de adesão em 1981.

"Sou um nada. Menos do que um nada", repetia, para se defender de tanto assédio e evitar uma armadilha perigosa: a vaidade.

Com a bênção de Chico, os centros espíritas kardecistas se multiplicaram (hoje já são mais de 5 mil) e formaram uma rede de solidariedade ativa no Brasil. Por estatuto, cada centro deve divulgar o Evangelho, promover sessões públicas (sempre gratuitas) e, o mais importante, prestar serviços à comunidade.

"Ajudai-vos uns aos outros" era o remédio receitado por Chico para todos os males.

"Ajude e será ajudado", ele aconselhava aos desesperados e seguia à risca a própria receita.


Marcel Souto Maior

Da obra “As Vidas de Chico Xavier”.

Foto de Marcel Souto Maior - portal “O Estadão”

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente post. Vale a pena divulgar o trabalho sério feito pelo jornalista, em contrapartida de outros que temos visto.
Um abraço
Bia

Adriana disse...

Esse livro é maravilhoso. A história do Chico é fantástica e um grande exemplo para todos nós.

Abraço! :)

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