sábado, 22 de maio de 2010

Análise crítica de Amélia Rodrigues



* por Germano Machado


Academia Baiana de Educação poderia escolher, na exclusividade do coração e afinidade de espírito, a mulher educadora, apóstola do educar como técnica e da educabilidade como cultura superior da alma. Sempre admiramos Amélia Rodrigues, cujo livro Flores da Bíblia li associando-a, na memória afetiva, a outra mulher também sul e latino-americano, Gabriela Mistral, a grande chilena. Externamente desiguais, internamente irmãs.

A dificuldade inicial de um conhecimento mais aproximado de Amélia Rodrigues foi superada com o apoio de Hermano Gouveia que, no seu humanismo me entregou pasta inteira da educadora apóstola. O também amigo e confrade José Nilton Alves de Sousa, o complementou. Então, ao trabalho. Antes, porém outra recordação: linguagem cordial de quem envelhece, no corpo, sim, fatalidade bio-fisiológica, nunca no espírito, fato de transferência no afirmar do médico fisiológo Victor Franklin, que se liberta para sua pátria legítima, sim, através de um processo, o de se afirmar para o alto, a coerência fundamental, sede de infinito, vontade de eterno, aspirar do permanente: eis Amélia Rodrigues.

Recordemos também: quando há muitos anos, tantos que só a memória arquiva (lembro o gênio de Agostinho), estando no setor panamericano na Universidade do Brasil a fazer pesquisa, por indicação do querido companheiro Ático Villas Boas da Mota, baiano de Góias, do Rio e Macaubense sempre, a dirigente era uma chilena, dona Marta Elba de Miranda. Falamos, então, de Gabriela, e, baianamente, com maior naturalidade citei Amélia Rodrigues. Gabriela sem querer descreveu Amélia Rodrigues em seu poema sobre La Maestra Rural: “La Maestra és pura… La Maestra és pobre… La Maestra és alegre…” E eis Amélia Rodrigues: ser ela de nascimento santamarense, como santamarense, também de distrito do grande Município, é minha esposa, a mãe dos meus filhos, companheira de tantos anos, lutas e reveses e glória, doação e amor, educadora, como professora, com algo, “não exagere o afeto”, de sua conterrânea.

Finalmente, se Amélia Rodrigues nasce em vinte e seis de maio de mil oitocentos e sessenta e um, eu nasci, mera curiosidade dois dias depois, aos vinte e oito de maio e se ela morre em 1926, nasci eu, nesse ano mesmo. Exterioridade, talvez, refletirá o crítico racionalista; disposições da Providência, proclamarei com Agostinho, que era o externar da Filosofia, Teologia do gênio africano de Tagasta.

Amélia Rodrigues, sendo educadora, fez-se escritora: usou do conto e do romance, da dramaturgia, da tradução, do apostolado, para mais e melhor ser mestra. Carlos Chiacchio, a propósito do centenário de nascimento da grande mulher escreveu: “Era o seu instinto. A sua vocação. O seu destino. Nasceu para lutar. Onde houvesse luta, aí estaria a plantar o seu vexilo, paladina do ideal pelas melhorias humanas. Humanista por índole, por educação, por antevisionismo político, aos movimentos espirituais da época emprestou sempre o seu concurso, a sua força e o seu dessassombramento…

No seu tempo, sob o puro liberalismo político, a mestra foi aberta ao problema social e usou da poesia para alertar a todos sobre o destino triste da criança sem escola e sem amparo da sociedade. Assim em Réu de Amanhã”.

O dia inteiro pelas ruas anda
Enxovalhado, roto, indiferente, mãos nos bolsos,
Olhar impertinente,
Um machucado chapeuzinho à banda,

Cigarro à boca, modos de quem manda,
Um dandy da miséria,
Alegremente a procurar ocasiões somente
Em que as tendências bélicas expanda.

E tem doze só!… flor do monturo,
Que lhe arranca o veneno ao seio impuro
E os tentáculos do mal, que entorno avança?!

Quem vai fazer-lhe a peregrina esmola
De atirá-lo à oficina, ao templo, à escola,
Mudando essa ameça numa esperança?!…

Ontem e hoje dolorosas perguntas castroalvinas, pelo tempo, pelo ambiente, pelo ardor em ver, educadora radical, a liberdade dos irmãos negros, questão social do Império ainda não de todo vista e analisada, canta:

(Versos e Reversos)
Faz anos hoje a filha do Senhor; tudo é prazer nas salas do sobrado;
Das janelas través o cortinado,
Sai em jorros, a luz passa o calor.

Recende fora do banquete a dor;
Soa em trilos o piano bem tocado;
E os gorjeios de um canto apaixonado
Do rouxinol nos lábios de uma flor.

Mas, enquanto lá dentro a festa, a dança,
Brindes, discursos, riso, intemperrança,
misturam-se ao fragor de urras e bravos,
Do engenho em negro e imundo calabouço
Presos num tronco vil pelo pescoço,
Gemem tintos de sangue, alguns escravos…

Não se há assim de chamar a educadora de alienada, nunca. A luta do seu tempo lhe pertence, sua pátria lhe merece, cotidianamente, amor e ânimo de peleja contra o negativo, pois a educadora, se tem visão do universal, o comunitário nacional lhe está à frente de imediato. Ainda aqui a poetisa vê o problema sócio político imediato: a questão da liberdade.

(Ainda não)

Outrora, quando a pátria se estorcia
Nos ferros da metropole humilhante
um grupo, de homens não, mas de gigantes,
Ergueu-se para comprar-lhes a autonomia.

E o sangue que nos campos escorria,
E dos canhões as bocas retumbantes
Aos europeus disseram, triufantes,
Que a liberdade no Brasil nascia…

Porém os brasileiros desgraçados
Ao poste das misérias amarrados
Sucumbindo ao horror da escravidão,

Quando os heróis de júbilo exaltaram,
No estertor de angústias exclamaram
Do fundo dos engenhos: ainda não!

Lelis Piedade em A NOVA ÉPOCA, em vista de tal espírito escrevia em mil novecentos e quatro: “Amélia Rodrigues tem nos seus livros em prosa ou em verso, a nota quente do patriotismo. A Pátria tem no seu coração um culto especial, ardente de verdadeira propagandista”. “Nos tempos da Abolição a sua pena entrou triufante na grande liça, defendendo os escravos com uma dedicação que mereceu aplauso dos que na Bahia contribuíram para a grande obra do treze de maio”.

Era o drama político social econômico e Amélia educadora, não poderia alhear-se da realidade imediata. Participante sempre, a educadora usa deste soneto histórico:

(Soror Joana Angélica)
Infrene soldadesca, alucinada,
Sedenta de oiro, horrível de furor,
como um tufão de ódio e de terror,
corre pela cidade consternada…

roubando, mata, e vai desenfreada
contra as portas da casa do Senhor,
Onde viceja da pureza a flor,
Pelos anjos do céu custodiada…

Salta a madeira aos golpes da alavanca da turba vil…
Mas, à segunda porta, uma figura surge, doce e branca
É Soror Joana que a passagem corta!

“Mate-se a freira!…”
E logo a entrada franca
Se faz, por cima da abadessa morta…

E o que fazia assim a grande moça? Educava – seu método e educar se realiza sempre por uma metodologia – era o despertar a consciência de seus contemporâneos e, de modo mais direto os educandos, na ação e na prática para os grandes problemas brasileiros, humanos e da comunidade imediata. Um deles era face política de nacionalista equilibrada, de profundidade patriótica, jamais xenófoba. O educador é universal no nacional, sempre voltado à pequena pátria do município e da região. Na linha de Miguel de Unamuno. Alma intuitiva, distinguia Amélia neste problematizar, os assuntos da educação ligados à crença e a Deus. Não é nunca uma crença desligada, inscônscias, mas, antes, dentro do valor do trabalho, certa sempre de que Deus é Pai e Providência, não apenas um argumento racional, mas um valor concreto.

Assim do arquivo particular de Hermano Gouveia transcrevo o poemeto que ilumina o que acabo de expressar, datado de Santo Amaro, novembro de mil oitocentos e oitenta e três, sem título:

Rezemos!…
De longe nos trazem os ecos
O toque dos sinos da igreja vizinha,
Os pobres campôneos, devotos orando
Já ergue-se a porta de cada casinha.

Ó! Nada é mais doce do que est’hora
Em que a luz é dúbia e o ar tão manso!
Mais terno que a luz é dúbia e o ar tão manso
E após o trabalho melhor do que o descanso!

Em A Tarde em dois de fevereiro de mil novecentos e cinqueta e sete e também em folheto sobre o Centenário de Nascimento da Educadora, em vinte e seis de maio de mil novecentos e sessenta e um, a professora Jésse Damasio De Paula, diretora de uma escola com nome da poeta, escreve: “Se não lhe bastasse a grande obra social que realizou, abnegada e estóica, na vanguarda das damas de Maria Auxiliadora e de quantas instituições de caridade foi estrênue partícipe, as cintilações de seu talento, verberando ali e alhures, por si sós lhe dão direito a mais gloriosa imortalidade”.

Ela, pois, ao mesmo tempo mulher de pensamento e de ação social, uma educadora agindo pela transformação do meio ambiente, uma escritora que visava a mudança do homem e da mulher, no seu eu social e cultural, religioso e humano. A escritora e a poeta, a personalidade total de Amélia Rodrigues visava contudo a educação.



*O professor Germano Machado é membro da Academia de Artes e Letras Matter Salvatoris, Membro da Academia de Letras e Arte de Salvador (ALAS), professor aposentado da UCSAL e da UFBA, colaborador do Jornal Tribuna da Bahia.



Trecho do artigo "Análise Crítica de Amélia Rodrigues, por Germano Machado.
Leia aqui o artigo na íntegra.
Foto de Germano Machado : LBV

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