quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Criminosos Arrependidos


Verger

(Assassino do arcebispo de Paris)


A 3 de janeiro de 1857, Mons. Sibour, arcebispo de Paris, ao sair da Igreja de Saint-Etienne-du-Mont, foi mortalmente ferido por um jovem padre chamado Verger. O criminoso foi condenado à morte e executado a 30 de janeiro.

Até o último instante não manifestou qualquer sentimento de pesar, de arrependimento, ou de sensibilidade. Evocado no mesmo dia da execução, deu as seguintes respostas:

1. Evocação. — R. Ainda estou preso ao corpo.

2. Então a vossa alma não está inteiramente liberta?

— R. Não... tenho medo... não sei... Esperai que torne a mim. Não estou morto, não é assim?

3. Arrependei-vos do que fizestes? — R. Fiz mal em matar, mas a isso fui levado pelo meu caráter, que não podia tolerar humilhações... Evocar-me-eis de outra vez.

4. Por que vos retirais?

— R. Se o visse, muito me atemorizaria, pelo receio de que me fizesse outro tanto.

5. Mas nada tendes a temer, uma vez que a vossa alma está separada do corpo. Renunciai a qualquer inquietação, que não é razoável agora.

— R. Que quereis? Acaso sois senhor das vossas impressões? Quanto a mim, não sei onde estou... estou doido.

6. Esforçai-vos por ser calmo.

— R. Não posso, porque estou louco... Esperai, que vou invocar toda a minha lucidez.

7. Se orásseis, talvez pudésseis concentrar os vossos pensamentos...

— R. Intimido-me... não me atrevo a orar.

8. Orai, que grande é a misericórdia de Deus! Oraremos convosco.

— R. Sim; eu sempre acreditei na infinita misericórdia de Deus.

9. Compreendeis melhor, agora, a vossa situação?

— R. Ela é tão extraordinária que ainda não posso apreendê-la.

10. Vedes a vossa vítima?

— R. Parece-me ouvir uma voz semelhante à sua, dizendo-me: “Não mais te quero...” Será, talvez, um efeito da imaginação!... Estou doido, vo-lo asseguro, pois que vejo meu corpo de um lado e a cabeça de outro... afigurando-se-me, porém, que vivo no Espaço, entre a Terra e o que denominais céu... Sinto como o frio de uma faca prestes a decepar-me o pescoço, mas isso será talvez o terror da morte... Também me parece ver uma multidão de Espíritos a rodear-me, olhando-me compadecidos... E falam-me, mas não os compreendo.

11. Entretanto, entre esses Espíritos há talvez um cuja presença vos humilha por causa do vosso crime.

— R. Dir-vos-ei que há apenas um que me apavora — o daquele a quem matei.

12. Lembrai-vos das anteriores existências?

— R. Não; estou indeciso, acreditando sonhar... Ainda uma vez, preciso tornar a mim.

13. (Três dias depois.) — Reconhecei-vos melhor agora?

—R. Já sei que não mais pertenço a esse mundo, e não o deploro. Pesa-me o que fiz, porém meu Espírito está mais livre. Sei a mais que há uma série de encarnações que nos dão conhecimentos úteis, a fim de nos tornarmos tão perfeitos quanto possível à criatura humana.

14. Sois punido pelo crime que cometestes?

— R. Sim; lamento o que fiz e isso faz-me sofrer.

15. Qual a vossa punição?

— R. Sou punido porque tenho consciência da minha falta, e para ela peço perdão a Deus; sou punido porque reconheço a minha descrença nesse Deus, sabendo agora que não devemos abreviar os dias de vida de nossos irmãos; sou punido pelo remorso de haver adiado o meu progresso, enveredando por caminho errado, sem ouvir o grito da própria consciência que me dizia não ser pelo assassínio que alcançaria o meu desiderato. Deixei-me dominar pela inveja e pelo orgulho; enganei-me e arrependo-me, pois o homem deve esforçar-se sempre por dominar as más paixões — o que aliás não fiz.

16. Qual a vossa sensação quando vos evocamos?

— R. De prazer e de temor, por isso que não sou mau.

17. Em que consiste tal prazer e tal temor?

— R. Prazer de conversar com os homens e poder em parte reparar as minhas faltas, confessando-as; e temor, que não posso definir — um quê de vergonha por ter sido um assassino.

18. Desejais reencarnar na Terra?

— R. Até o peço e desejo achar-me constantemente exposto ao assassínio, provando-lhe o temor.

Monsenhor Sibour, evocado, disse que perdoava ao assassino e orava para que ele se arrependesse. Disse mais que, posto estivesse presente à sua evocação, não se lhe tinha mostrado para lhe não aumentar os sofrimentos, porquanto o receio de o ver já era um sintoma de remorso, era já um castigo.

— P. O homem que mata sabe que, ao escolher nova existência, nela se tornará assassino?

— R. Não; ele sabe que, escolhendo uma vida de luta, tem probabilidades de matar um semelhante, ignorando porém se o fará, pois está quase sempre em luta consigo mesmo. A situação de Verger, ao morrer, é a de quase todos os que sucumbem violentamente. Não se verificando bruscamente a separação, eles ficam como aturdidos, sem saber se estão mortos ou vivos. A visão do arcebispo foi-lhe poupada por desnecessária ao seu remorso; mas outros Espíritos, em circunstâncias idênticas, são constantemente acossados pelo olhar das suas vítimas.

À enormidade do delito, Verger acrescentara a agravante de se não ter arrependido ainda em vida, estando, pois, nas condições requeridas para a eterna condenação. Mas, logo que deixou a Terra, o arrependimento invadiu-lhe a alma e, repudiando o passado, deseja sinceramente repará-lo. A isso não o impele a demasia do sofrimento, visto como nem mesmo teve tempo para sofrer, mas o alarme dessa consciência desprezada durante a vida, e que ora se lhe faz ouvir.

Por que não considerar valioso esse arrependimento? Por que admiti-lo dias antes como salvante do inferno, e depois não?

E por que, finalmente, o Deus misericordioso para o penitente, em vida, deixaria de o ser, por questão de horas, mais tarde? Fora para causar admiração a rápida mudança algumas vezes operada nas idéias de um criminoso, endurecido e impenitente até à morte, se o trespasse lhe não fosse também bastante, às vezes, para reconhecer toda a iniqüidade da sua conduta. Contudo, esse resultado está longe de ser geral — o que daria em conseqüência o não haver Espíritos maus. O arrependimento é muita vez tardio, e daí a dilação do castigo.

A obstinação no mal, em vida, provém às vezes do orgulho de quem recusa submeter-se e confessar os próprios erros, visto estar o homem sujeito à influência da matéria, que, lançando-lhe um véu sobre as percepções espirituais, o fascina e desvaira. Roto esse véu, súbita luz o aclara, e ele se encontra senhor da sua razão.

A manifestação imediata de melhores sentimentos é sempre indício de um progresso moral realizado, que apenas aguarda uma circunstância favorável para se revelar, ao passo que a persistência mais ou menos longa no mal, depois da morte, é incontestavelmente a prova de atraso do Espírito, no qual os instintos materiais atrofiam o gérmen do bem, de modo a lhe serem precisas novas provações para se corrigir.


“O Céu e o Inferno”, Allan Kardec cap.VI itens de 1 a 18.

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