quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Filosofia e Espiritismo



0 que é Filosofia?

É comum ouvir-se de pessoas que não aceitam o Espiritismo a afirmação de que a Filosofia Espírita não existe. Conhecido professor brasileiro de Filosofia chegou a declarar numa entrevista à imprensa brasileira que "O Livro dos Espíritos" nada tem de filosófico. A mesma coisa acontece com o Marxismo. Papini esforçou-se, em toda a sua vida, para provar que Marx era um economista, e portanto, não devia ser confundido com um filósofo. Como se um economista não pudesse e até mesmo não precisasse de filosofar. Sartre, pelo contrário, considera o Marxismo como a única Filosofia do nosso tempo. As opiniões são contraditórias, mas isso não nos deve impressionar, pois opiniões não passam de palpites, de pontos de vista individuais, sujeitos às idiossincrasias de cada um. E Pitágoras, o criador do termo Filosofia, já afirmava que a Terra é a morada da opinião. Mais tarde, Descartes advertiu que o preconceito e a precipitação, dois vícios comuns da espécie humana, prejudicam o juízo e impedem a descoberta da verdade.

Um filósofo, um professor de filosofia, um pensador honesto e até mesmo uma simples criatura de bom-senso não podem negar a existência da Filosofia Espírita, a menos que não saibam o que essa palavra significa. Muito menos negar a natureza filosófica de "O Livro dos Espíritos", que é um verdadeiro tratado de Filosofia. Veja-se, por exemplo, como Yvonne Castellan, que não é espírita, encara esse livro em seu estudo sobre o Espiritismo. Consulte-se o "Dicionário Técnico e Científico de Filosofia", de Lalande. E leia-se o admirável ensaio de Gonzales Soriano, desafiadoramente intitulado "El Espiritismo es la Filosofia".

São muitas as definições de Filosofia, mas a que subsiste como essencial é ainda a de Pitágoras: "Amor da Sabedoria". Daí a exatidão daquele axioma: "A Filosofia é o pensamento debruçado sobre si mesmo." Eis a descrição perfeita de um ato de amor: a mãe se debruça sobre o filho porque o ama e deseja conhecê-lo. A sabedoria é filha do pensamento, que a embala em seus braços, alimentando-a e fazendo-a crescer. Assim, o objeto da Filosofia é ela mesma, não está fora, no exterior, mas dentro dela. Podemos defini-lo como a relação entre o pensamento e a realidade. Essa a razão de Gonzales Soriano afirmar que o Espiritismo é a Filosofia. Razão, aliás, que ele demonstra filosoficamente em seu livro. O Espiritismo é, segundo sua definição, "a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicada à investigação da verdade." É o pensamento debruçado sobre si mesmo para reajustar-se à realidade.

O que é Espiritismo?

Respondida a pergunta sobre Filosofia devemos tratar ligeiramente da natureza do Espiritismo. E nada mais necessário do que isso, porque nada mais desconhecido em nosso mundo do que ele. Fala-se muito em Espiritismo, mas quase nada se sabe a seu respeito. Kardec afirma, na introdução de "O Livro dos Espíritos," que a força do Espiritismo não está nos fenômenos, como geralmente se pensa, mas na sua "filosofia", o que vale dizer na sua mundividência, na sua concepção da realidade. Mas de onde vem essa concepção? Como foi elaborada?

Os adversários do Espiritismo desconhecem tudo a respeito e fazem tremenda confusão. Os próprios espíritas, por sua vez, na sua esmagadora maioria estão na mesma situação. Porquê? E fácil explicar. Os adversários partem do preconceito e agem por precipitação. Os espíritas em geral fazem o mesmo: formularam uma ideia pessoal da Doutrina, um estereótipo mental a que se apegaram. A maioria, dos dois lados, se esquece desta coisa importante: o Espiritismo é uma doutrina que existe nos livros e precisa ser estudada. Trata-se, pois, não de fazer sessões, provocar fenômenos, procurar médiuns, mas de debruçar o pensamento sobre si mesmo, examinar a concepção espírita do mundo e reajustar a ela a conduta através da moral espírita.

Assim, temos alguns dados: o Espiritismo é uma doutrina sobre o mundo, dá-nos a sua interpretação e nos mostra como nos devemos conduzir nele. Mas como nasceu essa doutrina, em que cabeça apareceu pela primeira vez? Dizem que foi na de Allan Kardec, mas não é verdade. O próprio Kardec nos diz o contrário. Os dados históricos nos revelam o seguinte: o Espiritismo se formou lentamente através da observação e da pesquisa científica dos fenômenos espíritas, hoje parapsicologicamente chamados de fenômenos paranormais. Os estudos científicos começaram seis anos antes de Kardec, nos Estados Unidos, com o famoso caso das irmãs Fox em Hydesville. Quando Kardec iniciou as suas pesquisas na França, em 1845, já havia uma grande bibliografia espírita, com a denominação de neo-espiritualista, nos Estados Unidos e na Europa. Mas foi Kardec quem aprofundou e ordenou essas pesquisas, levando-as às necessárias consequências filosóficas, morais e religiosas.

O "Livro dos Espíritos" nos oferece a súmula do trabalho gigantesco de Kardec. Mas se quisermos conhecer esse trabalho em profundidade temos de ler toda a bibliografia kardeciana: os cinco volumes da codificação doutrinária, os volumes subsidiários e mais os doze volumes da Revista Espírita, que nos oferecem o registro minucioso das pesquisas realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. E precisamos nos interessar também pelos trabalhos posteriores de Camille Flammarion, de Gabriel Dellane, de Ernesto Bozzano, de Léon Denis (que foi o continuador e o consolidador do trabalho de Kardec).

Veremos, assim, que Kardec partiu da pesquisa científica, originando-se desta a Ciência Espírita; desenvolveu a seguir a interpretação dos resultados da pesquisa, que resultou na Filosofia Espírita; tirou, depois, as conclusões morais da concepção filosófica, que levaram naturalmente à Religião Espírita. É por isso que o Espiritismo se apresenta como doutrina de tríplice aspecto. A Ciência Espírita é o fundamento da Doutrina. Sobre ela se ergue a Filosofia Espírita. E desta resulta naturalmente a Religião Espírita. Muitas pessoas se atrapalham com isso e perguntam: "Como uma doutrina pode ser, ao mesmo tempo, Ciência, Filosofia e Religião?" Mas essa pergunta revela a ignorância do processo gnoseológico. Porque, na verdade, o conhecimento se desenvolveu nessa mesma sequência e em todas as formas atuais de conhecimento repete-se o processo filogenético.

No Espiritismo, porém, esse processo aparece bem preciso, bem marcado por suas fases sucessivas, entrosadas numa sequência lógica. Podem alguns críticos alegar que Kardec não partiu da pesquisa, mas da crença. Alguns chegam a afirmar que foi assim, que ele já acreditava nas comunicações espíritas antes de iniciar o seu trabalho de investigação. Mas essa afirmação é falsa, a suposição é gratuita. Basta uma consulta às anotações íntimas de "Obras Póstumas" e às biografias do mestre para se ver o contrário. Quando lhe falaram pela primeira vez em mesinhas falantes, Kardec respondeu como o fazem os céticos de hoje: "Isso é conversa para fazer dormir em pé". Só deixou essa atitude cética depois de constatar a realidade dos fenômenos. Então pesquisou, aprofundou a questão e levou-a às últimas consequências, como era, aliás, de seu hábito, do seu feitio de investigador. Charles Richet lhe faz justiça (embora discordando dele) em seu Tratado de Metapsíquica.

Encarando a obra de Kardec pelo seu aspecto científico, sem os preconceitos que têm impedido a sua justa avaliação, ela nos parece inatacável. Alega-se que o seu método de pesquisa não era científico, mas foi ele o primeiro a explicar que não se podiam usar na pesquisa psíquica os métodos das ciências físicas. O desenvolvimento da Psicologia provaria mais tarde que Kardec estava com a Razão. Hoje, as pesquisas parapsicológicas o confirmam. No tocante ao aspecto filosófico, o desenvolvimento atual das investigações mostram a posição acertada do Espiritismo como doutrina assistemática, "livre dos prejuízos de espírito de sistema", como declara "O Livro dos Espíritos", utilizando a conjugação dos métodos indutivo e dedutivo para o esclarecimento da realidade em seu duplo sentido: o objetivo e o subjetivo. A Filosofia Espírita se apresenta como antecipação das conquistas atuais do campo filosófico e abertura de perspectivas para o futuro.

A Tradição Filosófica

A Filosofia Espírita se apresenta naturalmente integrada na tradição filosófica. Foi por isso que Kardec colocou, sobre o título de "O Livro dos Espíritos", a indicação: "Filosofia Espiritualista". Em "O Evangelho Segundo o Espiritismo" ele indica Sócrates e Platão como precursores do Cristianismo e do Espiritismo, sendo este o desenvolvimento histórico daquele. Mas podemos ir mais longe, demonstrando as múltiplas relações da Filosofia Espírita com as mais significativas escolas filosóficas do passado. Na verdade, a Filosofia Espírita se apresenta, para o investigador imparcial, como o delta natural em que desemboca no presente toda a tradição filosófica.

Essa convergência, porém, não se faz de súbito, não é um "arranjo", como pretendem os adversários gratuitos do Espiritismo. Podemos ver "com os olhos" o processo de convergência delinear-se na própria História da Filosofia. Dos pitagóricos (com sua simbiose espiritual traduzida na doutrina da metempsicose) aos jônicos (com sua busca da origem única, da substância originária), aos eleatas (com a procura do Ser em seu sentido absoluto), até Plotino (o neoplatonismo investigando a "alma-viajora"), passando pela contribuição da doutrina de forma e matéria, de Aristóteles (antecipação da teoria espírita do períspirito), chegamos ao Renascimento. E é nesta fase que a confluência se define: primeiro com a rebelião de Abelardo, preparando o advento de Descartes; depois, com este, o pai do pensamento moderno, que escreveu o "Discurso do Método" sob inspiração do Espírito da Verdade; a seguir com Espinosa, que fez da "Ética" um livro precursor (em estrutura, substância e ligações históricas) de "O Livro dos Espíritos".

A tradição filosófica é o terreno vasto e profundo em que podemos descobrir as raízes da Filosofia Espírita. Mas, como vimos, essa tradição se prolonga até o mundo moderno que começou no Renascimento e veio findar na guerra de 1914-18. E depois, no mundo contemporâneo, reencontramos as conotações filosóficas do passado. No mundo moderno podemos lembrar as figuras centrais de Hegel e Kant, o primeiro com sua dialética da ideia (evolução do princípio espiritual através da matéria) e o segundo com sua teoria do númeno e do fenômeno e sua crítica da razão (correspondentes à teoria espírita da alma e matéria e a crítica da fé em Kardec). Na atualidade as principais escolas filosóficas apresentam relações evidentes com a Filosofia Espírita. Estudaremos essas relações no prosseguimento deste trabalho. Mas convém destacar desde logo o paralelismo da corrente filosófica característica do pensamento atual com o Espiritismo. Paralelismo tanto mais evidente quanto se apresenta no tempo e no espaço (contemporaneidade), no método de abordagem dos problemas filosóficos (o enfoque ontológico existencial), e na procura da compreensão racional (humana e não teológica) da problemática da existência. E a corrente das Filosofias da Existência, que surgiu na mesma época do Espiritismo; na Europa, na mesma posição assistemática (Kierkegaard e sua aversão aos sistemas), com o mesmo processo de abordagem do problema do Ser (através do ser humano na existência) e a mesma busca de transcendência na interpretação da natureza humana ou essência do ser.

Mas acontece com o Existencialismo o que Kardec assinalou no tocante às ciências materiais: o paralelismo com o Espiritismo vai até o limite da conceituação da "existência". Depois desse limite o Espiritismo prossegue sozinho, investigando e aprofundando o problema das relações interexistenciais, que abre as possibilidades de comprovação das antigas intuições sobre as existências múltiplas do ser. No Espiritismo essas intuições, que desde a antiga metempsicose egípcia, adotada pelos pitagóricos, até a ressurreição judaica e a teoria católica de ressurreição da carne se mantiveram no plano sobrenatural, transformam-se em conceitos racionais comprovados pela experiência e a investigação científica.

Chegamos assim a um ponto de contato da Filosofia Espírita com o panteísmo de Espinosa, que é o da negação do sobrenatural. A Filosofia Espírita não é panteísta, o que está explícito em "O Livro dos Espíritos". Mas isso não impede que haja entre Espinosa e Kardec a concordância no tocante ao sobrenatural. Para a Filosofia Espírita o sobrenatural, segundo a concepção vigente até nossos dias, é apenas "o natural ainda não conhecido", pois tudo quanto existe pertence à Natureza e tudo quanto estiver além da Natureza não é acessível ao nosso conhecimento (posição paralela à do criticismo kantiano). Esse conceito de Natureza no Espiritismo é um dos pontos mais significativos da Filosofia Espírita e a coloca numa posição de vanguarda perante o pensamento contemporâneo. Quando as ciências atuais se viram obrigadas a adotar a expressão "paranormal", como substitutiva da expressão "sobrenatural", nas investigações sobre a natureza humana, nada mais fizeram do que seguir a orientação firmada pelo pensamento espírita há mais de um século.

Como se vê, desta simples exposição inicial, é inegável a natureza de síntese da Filosofia Espírita. Ela representa um daqueles momentos de confluência de todas as conquistas culturais do homem para um delta comum, a que se refere Arnold Toynbee nos seus estudos sobre o desenvolvimento das civilizações. Ernst Cassirer, filósofo alemão contemporâneo, em seu ensaio "A Tragédia da Cultura"; analisa o processo de evolução cultural do homem através das civilizações sucessivas, demonstrando que as conquistas essenciais de cada época são transmitidas à outra por meio de concretizações, de formas sintéticas de expressão. O Espiritismo, como afirmaram Kardec, Léon Denis, Sir Oliver Lodge, Gustave Geley, e Gonzales Soriano, entre outros, é a síntese cultural do nosso tempo. A Filosofia Espírita sintetiza em sua ampla e dinâmica conceituação todas as conquistas reais da tradição filosófica, ao mesmo tempo que inicia o novo ciclo dialético da nova civilização em perspectiva.


Autor: José Herculano Pires

Fonte: Introdução à Filosofia Espírita

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